quarta-feira, 1 de outubro de 2008

NOTAS SOBRE A INCAPACIDADE CIVIL DOS EXCEPCIONAIS E DOS PRÓDIGOS - Natanael Sarmento - Dr. Prof. Titular da Unicap



Na ordem civil “toda pessoa é capaz de direitos e deveres” ex-vi do art.1º da Lei nº. 10.406/2002 que institui o Código Civil. Significa que toda e qualquer pessoa tem a aptidão de gozar direitos e também deveres civis. Tal aptidão diz respeito à capacidade de direito ou de gozo dos direitos civis, capacidade extensiva a todas as pessoas, sem exceção. Porém, nem todas as pessoas são consideradas aptas a exercer, pessoalmente, os direitos, embora sejam elas titulares desses direitos. Na capacidade de exercício dos direitos a lei distingue as pessoas em capazes e incapazes. O art. 3º enumera as pessoas absolutamente incapazes: menores de dezesseis anos, enfermos ou deficientes mentais sem o necessário discernimento e aqueles que não podem exprimir a sua vontade, mesmo que transitoriamente. O art. 5º arrola os casos de relativa incapacidade civil: maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, ébrios habituais, toxicômanos, e deficientes mentais com reduzido discernimento, excepcionais sem desenvolvimento mental completo e os pródigos. No tocante aos índios a lei civil, corretamente, remete a matéria à legislação especial, a evitar mais confusão nessa matéria singular.
Vale lembrar que as pessoas absolutamente incapazes não praticam pessoalmente qualquer ato na vida civil, na aquisição, modificação e extinção de direitos na ordem civil devem ser representados pelos respectivos pais, tutores ou curadores. Pessoas relativamente incapazes praticam os atos civis validamente desde que devidamente assistidas pelos seus responsáveis legais.
Este estudo objeta a incapacidade civil dos excepcionais e dos pródigos. HUAIS (2004) define o excepcional como indivíduo que tem deficiência mental, baixo QI – quociente de inteligência e pródigo como o dissipador de bens, gastador, esbanjador, perdulário.
Com a finalidade de preservar os direitos dos excepcionais e dos pródigos, e o patrimônio familiar sob risco de dissipação pelos pródigos a lei estabelece a possibilidade jurídica da interdição judicial a qual se exige a perícia médica do interditando. O perito examina o interditando e na elaboração do laudo técnico deve dizer o grau de desenvolvimento da incapacidade de compreensão, se total ou parcial. Com base na prova pericial o juiz define os limites da interdição.
No âmbito do direito civil a perícia psiquiátrica tem vasta aplicação. A ação de interdição tem por escopo avaliar a capacidade mental da pessoa excepcional, e no caso do pródigo, a capacidade da pessoa gerir os próprios bens. Também podem ser requeridas perícias nas ações anulatórias de atos jurídicos. Releva determinar-se se a incapacidade preexistia ao ato ou foi superveniente, a fim de esclarecer se a pessoa estava em pleno gozo das faculdades mentais e conscientes no momento do ato ou do negócio jurídico, da doação, da compra e venda, do casamento, do testamento. Avalia-se em tais casos as condições de consciência da pessoa, a sua capacidade temporária. Requer-se a perícia psiquiátrica para se aferir se a pessoa praticou o ato de forma consciente, sabedor dos efeitos e conseqüências dele resultante ou se foi atitude temerária de alguém incapaz de compreender plenamente a extensão dos seus atos e por eles reger-se. Como regra a incapacidade superveniente não invalida o ato, e a recíproca é verdadeira, a incapacidade preexistente não se convalida pela capacidade superveniente. No âmbito do direito familiar há ainda as ações de anulação de casamentos e as ações de modificação de guarda de filhos, no caso de modificação ou desconhecimento da doença mental do cônjuge, e da incapacidade mental para manter a prole menor sob sua guarda. A perícia médica também se faz necessária nas ações de indenização a fim de precisar a extensão dos danos, causas, natureza, bem assim nas ações securitárias.
O Código Civil, lei nº. 10.406/ 2002, menciona a enfermidade ou deficiência mental sem discernimento –art. 3º, II, como incapazes absolutamente, em seguida, arrola ébrios habituais, viciados em tóxicos e portadores de deficiência mental como pessoas com reduzido discernimento. O cerne dessa questão reside na definição da extensão da incapacidade do interditando, absoluta ou relativa. Delimitar o grau de discernimento do agente para os atos da vida civil. O perito psiquiatra forense deve utilizar o seu conhecimento técnico-científico justamente para atestar qual é a real capacidade da pessoa, se ela é totalmente ou parcialmente incapaz de discernir os atos.
Mérito do legislador quando menciona a possibilidade de incapacidade civil transitória. Assim, alcançam os casos de doenças de origem orgânica transitória como AVC - Acidente vascular cerebral e alguns casos psicóticos transitórios.
Pessoas que sentem prejudicadas em testamentos não raro intentam ação de anulação do ato de disposição de vontade do testador sob o fundamento da incapacidade civil para testar. Assim, quando as circunstâncias patrimoniais e de disposição de vontade justificam, a evitar ações futuras, convém o testador fazer uma perícia psiquiátrica em vida “preventiva” a fim de garantir, efetivamente, a destinação pretendida do seu patrimônio e evitar ações anulatórias, perícia post mortem, e sabe-se lá qual destinação. O testador simplesmente faz uma avaliação psiquiátrica ordinária a fim de comprovar a inexistência de qualquer morbidez capaz de prejudicar o seu discernimento. Na perícia psiquiátrica relativa à capacidade testamentária investiga-se a capacidade subjetiva e objetiva do agente. Objetivamente avalia-se a capacidade do testador quanto aos valores econômicos e financeiros patrimonial, a exata compreensão dos herdeiros, sucessores e legatários, dos eventuais beneficiados e prejudicados com a distribuição dos bens nos termos da sua vontade. O aspecto subjetivo da questão testamentária examina os motivos, as razões afetivas e emocionais da atitude do testador em face das disposições de vontade. Problema a merecer atenção redobrada dos peritos é de perícia em testamentário sob estado de agonia, assim definido o realizado no momento terminal, no apagar da vida. Na agonia ou in extremis importa aferir a capacidade de discernimento incide absoluto. Pessoas agonizantes podem adotar atitudes anormais, praticar atos que de outra forma não praticariam, fazer doações exageradas, perdoar dívidas gigantescas, assim em diante. A perícia torna-se mais difícil pois se procede retroativamente, nas circunstâncias e antecedentes emocionais do agonizante. Há casos de anulações de testamento com base em perícias retrospectivas. Ditas perícias se fundam em depoimentos, informações de fatos ocorridos em tempo passado. Idêntico procedimento adota-se nas ações de anulação de doação e de negócios benéficos. O casamento de pessoas considerada enfermo mental pode ser anulado: [...] por vício da vontade, se houver por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro, art. 1.556. Também em face de erro essencial quanto à pessoa, desconhecer características mórbidas, defeito, mental ou físico relevante, grave doença transmissível, preexistência de doença grave.
PRÓDIGOS
De acordo com a doutrina a figura do pródigo remonta à antiguidade clássica, presente no direito romano, atribuindo-se ao jurisconsulto Paulo a sentença “Já que desperdiças, por tua inconsistência, os bens do teu pai e avô, levando teu filho à miséria, decreto a interdição, pelo bronze, de ti e dos teus atos, para a disposição de tuas coisas”.
A prodigalidade chega ao Brasil, então português, através das Ordenações Filipinas, "[...] pessoa que, como pródigo, desordenadamente gasta e destrói sua fazenda”, Livro IV, Título 103, § 6. A despeito dessa longevidade, o instituto há muito tem suscitado debates acalorados sobre a sua permanência. O cerne da questão está em saber até que ponto é justo restringir alguém de dispor livremente do próprio patrimônio em nome da salvaguarda desse mesmo patrimônio? Não será a dosagem do remédio demasiada forte de modo a mutilar o doente? As opiniões doutrinais sobre esse assunto se dividem.
Quando da elaboração do Código Civil de 1916 esse debate emergiu com força, sendo notável a tendência na supressão inclusive pelo grande mentor da codificação e revisor Clóvis Beviláqua, para quem a prodigalidade “ou era caso manifesto de alienação mental, e não há necessidade de destacá-la para constituir uma classe distinta de incapacidade, pois entra na regra comum; ou tal não é positivamente, e não há justo motivo para feri-la com a interdição". O revisor foi vencido, e o Código de 1916 prescreve a figura da prodigalidade numa situação de incapacidade intermediária, nem absolutamente incapaz, nem totalmente capaz art. 6º. O legislador da lei civil vigente, 10.406/2002, com tempo suficiente para amplos debates – o projeto do código foi apresentado ao Congresso no ano de 1975 – conservou o instituto no rol dos relativamente incapazes, art. 4º, IV.
Contudo, a prodigalidade não é tema pacífico, nem a mera previsão legal supera certas dificuldades e imprecisões à sua caracterização, nem muito menos um debate superficial sobre o tema complexo. De fato, apenas lecionar que o pródigo é a pessoa perdulária, aquele que dissipa de maneira imoderada o patrimônio, vulgata de gastador contumaz, decerto não elucida as controvérsias ensejadas nos campos da ética, da moral, do direito, da medicina, e enfim, trazida pela vida individual e social da pessoa humana. Resulta que a interdição de uma pessoa na esteira da prodigalidade envolve princípios e valores meta patrimoniais, alcançando esferas não menos caras ao ordenamento jurídico como a dignidade da pessoa, como a liberdade de agir e reagir em nome próprio, enfim, de dispor daquilo que lhe pertence, assim por diante. Como regra, o ser humano tem capacidade de direito, goza de direitos e deveres na ordem civil, sem exceção. O ordenamento jurídico impõe restrições ao exercício de direitos pelos incapazes, e o faz com sentido de proteção dos interesses materiais e morais dos incapazes. Tanto para os excepcionais quanto para os pródigos - esses últimos se equivalem ao mentecapto, ao idiota, relativamente aos bens – promove-se a curatela a evitar prejuízos, já que a capacidade plena e livre de ação na esfera civil colocaria em risco a integridade de seus direitos e da suas próprias pessoas. Não pairam dúvidas quanto à justeza e a necessidade de interdição de incapazes, institutos jurídicos existentes desde o direito romano clássico. No que diz respeito ao pródigo, a problemática reside em se tratar de pessoa mentalmente capaz de exercer todos os atos civis, salvo os relativos ao próprio patrimônio, e se encontrar o pretendido equilíbrio entre os princípios e os bens jurídicos em colisão: liberdade, dignidade, salvaguarda patrimonial. A prodigalidade não se presume, há de ser demonstrada através de perícia e declarada pelo juiz em sentença. Sujeito à curatela, art. 1767, V, a pessoa do pródigo não mais tem liberdade para ela mesma decidir a destinação dos seus bens, medida que visa evitar a dissipação inelutável do seu patrimônio. Mas a perícia médico-legal que serve de suporte à sentença deve mencionar a presença do “animus” temerário, não cabendo interditar uma pessoa capaz como pródiga em face da idade avançada por si só, da baixa escolaridade, analfabetismo, se ela possui o sem senso comum das pessoas. A prodigalidade exige comprovação judicial, firma-se no exame da pessoa e na apreciação de fatos da sua vida, nunca é presumida. Leva-se em conta a contumácia, a habitualidade dos gastos, observando-se princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Obviamente, gastos proporcionais e que não excedem o razoável não caracterizam a prodigalidade. A prodigalidade decorre de atos de disposição excessivos, de doações desproporcionais, de vendas por preço vil, quando reiterados e importam mais que eventual negócio prejudicial, que representem, efetivamente, a incapacidade do agente dispor livremente de próprios bens. Nesse caso, a evitar a ruína, a perda ou comprometimento do patrimônio da pessoa a lei prevê a interdição e a conseqüente nomeação do curador.
Em resumo, sobre a capacidade civil do pródigo e a sua interdição a lei 10.406/2002 que institui o Código Civil dispõe:
1. Pródigos são considerados pessoas relativamente incapazes, dicção do art. 4º, IV.
2. Pródigos estão sujeitos à curatela, regra do art. 1.767, V.
3. A interdição do pródigo pode ser promovida pelos pais, tutores, cônjuge, qualquer parente e Ministério Público, pela regência do art. 1.768, I, II e III.
Quanto ao exercício da curatela do pródigo, a que se aplicam as regras a respeito da tutela (art.1.781) dispõe o Código Civil no art. 1.782: A interdição do pródigo só o privará de, sem o curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração. O curador se obriga a prestar contas dos seus atos em nome do curatelado, exceto quando é cônjuge sob regime de comunhão universal e não há determinação judicial em contrário, pela regra do art. 1.183 do Código Civil.